Cartas a uma Jovem Bicha - Cansei de ser gente

Oi, Ariovaldo, como vais?
Olha, eu quero voltar pra casa, Ariô. Quero voltar, aqui não dá mais. A comida está me enjoando, o ar não me entra nos pulmões, eu estou sangrando muito. Está tudo doendo, todo meu corpo, eu sinto muito calor, não tenho onde me encostar. Minha campainha não toca há meses, sequer meu telefone. Não recebo emails, nem scraps... sempre olho no gmail, Yahoo, hotmail, orkut, todo o dia, mas não recebo mensagens. Aqui não está bom. Quero voltar pra casa. Quero acordar de novo na minha cama, quero voltar pro meu berço. Quero minha chupeta, minha mamadeira, meus brinquedos, minhas fraldas, Valdo. Não está nada bom. Estou me sentindo só, estou quase desistindo dessa vida. Não quero seguir adiante, não quero.
Não vai me adiantar crescer, ter emprego, ter meu dinheiro... Que dinheiro? Não tenho dinheiro agora, nem nunca terei. Não, pára tudo, quero descer, quero sair, não está mais bom, não está mais divertido. Não acho graça nenhuma, eu quero parar com essa brincadeira de ser gente. Não quero mais ser gente, quero ser cão. Quero ser gato, quero ser rato, quero ser uma nuvem, uma brisa. Cansei dos cheques especiais e dos cartões de crédito. Cansei das etiquetas penduradas nas pessoas, cansei dos preços dos seres humanos, eu não tenho dinheiro para pagar o que me cobram. Eu não tenho dinheiro, eu não tenho escrúpulos. Ou por meus escrúpulos serem demasiados é que não estou mais gostando disso tudo. Cansei da academia, cansei da musculação e do yoga. Meu corpo dói, dói, dói. Quero ser gordo, comer de tudo; melhor ainda: quero me livrar do meu corpo. Tudo é corpo, tudo é a extensão do corpo, tudo é feito para o corpo, tudo gira em torno do corpo. As pessoas só pensam em corpos, os mais belos, os mais fortes. E o meu corpo está cansado. Preste a atenção, Valdinho: não quero mais bíceps e tríceps trabalhados, eu não preciso deles.
Não quero mais ser gente, achei isso chato. E desagradável. E volúvel. E irritante. Quero ser uma estrela, um buraco negro. Quero ser o sol, a lua seria interessante também. Só sei que me cansei de ser gente. Pra quê? Pra pagar juros, pra pagar táxi, pra pagar cerveja e champagne? Pra pagar por sexo? Estou cansado de ficar sozinho, de ouvir música alta e ser repreendido pela síndica do prédio. Estou além das normas e aquém dos sentimentos. Não está mais legal ser gente, está ficando ruim, já está ruim há muito, não quero mais, desgostei. Quero voltar pra casa, prepare aquela mamadeira com leite gelado e achocolatado que eu adoro, Ariô! Quero minha infância de volta. A adolescência não precisa, essa eu pulo, mas eu quero minha infância. Tempo em que não havia preços, nem rótulos. Nem divagações sobre o que somos, nem dúvidas sobre sexo. Tempo em que a moeda era a tal que não existia; eu vivia num sistema de escambo. Dava-se um sorriso para ganhar um afago em troca. Assim, simples. Agora não é mais desse jeito, ninguém sorri, ninguém abraça. O que existe é escarro, tapa, soco, pontapé. Não quero mais ser gente, estou achando um saco.
Pra ser gente precisa ter uma boa dose de coragem e de abstração, Ariovaldo, que eu não tenho. Eu sou uma energia que existe para ser um lago, para ser uma árvore. Ser gente é complicado, é difícil, é chato e cansativo. Pra ser gente precisa ser cafajeste, precisa não ter caráter. Precisa esperar a hora certa, precisa saber quando e em quem dar o bote. Pra ser gente precisa ser ardiloso; em jogos e trapaças tudo tem que ser medido e bem calculado. Eu sou péssimo em cálculos. Pra ser gente precisa tomar banho todo o dia, precisa ser bonito, precisa ter dinheiro... Tá, pronto, estou fora do jogo, Valdinho, fo-ra! A não ser pela parte do banho, que eu adoro, mas que pouquíssimos dão valor, eu não tenho porque estar aqui. Esse negócio já me cansou, já me doeu, já me machucou, agora é hora de partir. Quero ser outra coisa. Eu estava pensando em ser um cometa, o que tu acha, Ariô? É simpático. Se bem que eu gosto dessa idéia de ser um cão, mas eu queria ser um São Bernardo, um Labrador. Cocker é muito agitado. Podia ser um gato também... um Angorá, bem gay, né, amigo? Siamês é feio, cansei de ser feio. Um golfinho! Golfinho é querido. Mas, pensando bem, acho que não quero ser nada que tenha um sistema nervoso desenvolvido... Tudo bem, para mim o fato de já não poder articular uma palavra é ótimo, mas ainda corro o risco de, sendo um cão, um gato, um golfinho, corro o risco de pensar, de me irritar, de chorar. Acho melhor ser uma estrela, uma lua, um sol, um cometa. Além de estar mergulhado no Cosmo, fico longe das pessoas, fico longe de gente. Não falo, não vejo, não sinto. E ainda por cima é bem capaz de eu ser bonitinho!
Cansei de ser gente, ta? Desculpe. Mas vou indo nessa, desse jogo eu desisto, passo adiante, não é pra mim, não nasci pra ser gente. Nasci pra ser um cometa.

Beijo, te adoro Ariovaldo!