estou um pouco desorganizado, um pouco obtuso em relação àquilo que
quero e àquilo que vi. não entendo bem o que quero para amanhã, nem
entendo o que sonhei ou de onde veio o que sonhei. espero respostas
dos outros (e haveria alguma resposta que não viesse do outro, nem que
sejam aquelas que temos que dar a nós mesmos?), respostas que nunca
vêm, cuja bifurcação me levariam para caminhos completamente
diferentes. mudo ou não mudo? permaneço ou não permaneço? aprovou-se
ou não aprovou-se? devolvo a casa ou não devolvo a casa? o ato de
devolver é sofrível, pois nunca "devolvemos" a coisa; a coisa está
sempre transformada, transfigurada, convertida, amassada, disforme por
aquilo que fizemos dela, com ela. não devolverei uma casa: devolverei
algo diferente de uma casa, algo que um dia foi um casa, com seus
compartimentos tão bem separados, tão bem climatizados, tão bem
decorados, tão bem pintados, tão bem localizados, tão bem iluminados:
não é mais uma casa. devolverei um buraco, uma caverna, uma rocha
vazada, um túnel, uma colmeia, uma ilhota, uma distopia. e onde entrarei?
esse lugar para onde vou, como me está sendo entregue? como um buraco?
estou indo morar no buraco, no túnel de outrem? espero um pagamento, o resto
majoritário do pagamento que me devem. o resto rico do meu trabalho. o resto dos
meus finais de semana, o resto de várias noites. espero que me paguem
o resto a que tenho direito - e é perverso pensar que tenho direito a
restos. o resto de amizade, o resto do sorriso, o resto do respeito.
hoje, por exemplo, vi um homem que me considera um resto esquecido (o
resto esquecido ainda goza do status de resto?). eu não o esqueci. pra
mim ele não é resto. eu não sou resto, pois nada em mim resta da vida,
nada em mim resta a viver: eu não sou hoje aquilo que de mim restou de anos
atrás.