eu finalmente mudei para o meio da cidade, para o coração da cidade, para o centro da quadra entre os prédios. eu mudei para o espaço imerso no urbano, no concreto, nas casas empilhadas, nas luzes que nunca apagam. mudei para o trânsito e para o tumulto, para a agitação, para o barulho e para a bagunça. nunca outrora eu estive tão quieto e calmo, consistente no passo, seguro na mirada. se fico três dias sem escrever me seco por dentro. se escrevo, inundo. meu coração dispara ao ouvir motores de carros na rua. a cabeça dói pelo álcool. tudo faz parte da experiência de estar aqui, no meio de gente, no meio de gente anônima, no meio de gente que se dilui (mas que também se afirma) no mar cinza. eu me libertei do vizinho, por exemplo. não temo mais me aproximar das janelas (coisa que faço, aliás, com menos pudor do que eu fazia antes), nem impeço meu olhar de pousar nas janelas alheias (que, de modo geral, não me chama a atenção). me libertei dele e de seu corpo, e das promessas que eu vi em toda sua vida. sem dúvida ele continua existindo em mim, mas não do mesmo modo. ele está deslocado, ofuscado, obscurecido pelo brilho fosco da diluição urbana anônima. ganhei outros vizinhos. com seus problemas e com suas vidas, e com suas luzes, suas esperanças, suas belezas. troquei um vizinho por vizinhos, no plural, e isso já valeu a mudança. troquei meu singular pelo meu plural, e isso já valeu a mudança. valeu a coragem de administrar as coisas que precisavam ir embora, e fazê-las ir embora, e a coragem de assumir os erros oriundos da decisão. nunca me supus um corajoso. finalmente eu mudei para o meio de mim, com meus vinhos, no plural.