eu quis falar sobre alguém e falei do ex-vizinho – de mim, em bem verdade, mas através do ex-vizinho. botei palavras no seu corpo. entretanto, não foi ele quem mais me fez pensar sobre mim hoje. por volta das cinco e meia da tarde meu celular tocou. era uma mulher. pediu para falar com Marcelo. recebo várias ligações de pessoas querendo falar com Marcelo. eu disse que o número não era mais aquele, que eu não era Marcelo. “ah, que pena... mas já aproveitando a oportunidade, o senhor já ouviu falar sobre nosso empreendimento imobiliário.... ?” e deixei aquela mulher falar sobre o empreendimento imobiliário do qual ela estava tentando me convencer a participar. “eu não tenho interesse agora; eu realmente não tenho interesse; eu não faço investimentos imobiliários.” nada adiantava para que ela se convencesse de parar de tentar me convencer. ela começou a me chamar de Marcelo. eu não a interrompi, tampouco a corrigi sobre quem eu era – do que serviria? ela tinha certeza de que eu era Marcelo. enquanto ela usava argumentos econômicos sobre a tripla valorização que se embutiria a qualquer imóvel que eu eventualmente comprasse, ou sobre a necessidade de eu confirmar presença em um feirão de imóveis a ocorrer no próximo dia para “garantir um bom lugar na fila da compra”, eu apenas pensava como era triste, imensamente triste, que essa pessoa falasse com um estranho acreditando que ele fosse alguém que não era, e que ela estivesse tentando me persuadir a comprar um imóvel quando mal tenho dinheiro para o pão. nada nela me comunicava algo, a não ser suas (as minhas?) agudas tristeza, pequenez, estreiteza. Eu pensava na tristeza dela, e ela pensava nos meus horários para amanhã, nos meus investimentos financeiros, no quanto ela precisava captar este cliente (o Marcelo) para garantir seu próprio emprego. o problema é que, ao falar de novo e de novo e de novo do corpo do ex-vizinho que me espreita, eu estou “garantindo um bom lugar na fila da compra” da minha trsiteza, da minha pequenez, da minha estreiteza. fecho-me em copas à possibilidade de o ex-vizinho não ser quem eu penso (quero) que ele seja: ele pode não ser Marcelo. não seja Marcelo.