não tenho medo, e é impressionante que eu não tenha medo, não tenho medo do escuro ou do breu, não tenho medo da distância nem do carro que precisarei guiar, nem da estrada, nem do preço da gasolina: em menos de quatro horas emergiu de mim, como uma Atlântida perdida, uma parte destemida, um rosto nem furioso nem benevolente, mas simplesmente calmo. um rosto que pode levar o tapa, que sofrerá com o tapa, que talvez sentirá vergonha do tapa. ainda assim um rosto, uma parte pública do meu corpo que olha para frente, em prospectiva e não em retrospectiva. o fato de eu ter morrido para algumas pessoas é bastante libertador. permite-me vaguear, nomadizar. cumpro minhas tarefas num silêncio a-egoico, como um monge, como um lavrador, como um burocrata do saber. não quero meu nome em referências bibliográficas pirotécnicas. quero meu salário e minhas alunas, meus alunos. quero poder escrever - o que não é brilhante, nem inovador, nem midiático, nem televisivo. não sei sequer qual a estrutura de um romance, não sei como planejar uma narrativa, nem como costurar uma história. não sei dar densidade aos personagens, não sei fazer ficção de longo fôlego. em verdade, domino pouco as normas do português escrito, cometo erros de grafia e de sintaxe. às vezes me cansa o exercício woolfiano de grudar as palavras nas costas de um ritmo, estetizar a onda e o fluxo das frases para focar ou adensar uma situação, um diálogo, a descrição de um espaço, a passagem do tempo, as águas. porque, a rigor, não faço ficção. não consigo criar personagens. meu mito individual de neurótico restringe muito minha capacidade criativa de fantasiar com vidas outras. não tenho mais medo nem de admitir isto: que não sou criativo e que não escrevo para além de um palmo além do meu umbigo (já ia escrevendo "nariz"). no entanto, é importante de dizer que jamais assino os comentários que faço acerca da minha própria vida. invisto na prosa, na possibilidade de encontrar palavras imprevistas e modos de narrar o que me acontece de uma maneira impensada - ou de uma maneira bastante laboriosa. jamais assino. não é meu nome que dá princípio de unidade àquilo que escrevo. não tenho medo do meu nome. se tivesse, seria ele que eu poria logo abaixo de cada parágrafo.