aqui, de onde a vejo, a chuva é uma fumaça. uma nuvem, uma nódoa espessa que não cai, mas que flutua grudada ao céu. percebo o movimento da água no vidro da janela, superfície na qual a água desliza. o barulho é aconchegante. são salpiques de pingos moles nas pedras, azulejos, metais, zinco duros. é profundamente classista gostar de tempestades, gostar do som da chuva, dos raios e relâmpagos. só os admiro porque, abrigado de sua destruição e desolação, eu me refestelo nos lençóis de algodão recém lavados. e o que haveria de ser o corpo do vizinho (agora ex) senão o desabrigo, a desolação, o desespero e o anonimato de alguém a perambular nas ruas sob uma forte tempestade? o que haveria de ser o corpo do ex-vizinho senão uma imagem e uma sensação de forte desamparo? uma criptonita da vida. o corpo do ex-vizinho está se insinuando por outros corpos, pronto para capturá-los e neles se assentar. pois sim: o corpo do ex-vizinho está por aí perambulando na chuva, preparando-se para não ser mais ex, mas ser in, prestes a se atualizar na minha nova rede da vida, exibindo sua cara e sua pujança, seu gosto e cheiro fortes. ele não sorri, nem fala comigo. o corpo do vizinho é meu abandono, meu exílio, longe da minha cama morna, dos meus lençois bem lavados. é onde estou todo exposto à intempérie dos olhares dos outros.