sempre soube ao longo da vida de pessoas que ouviam vozes. apenas isto: que ouviam vozes. era intrigante pra mim essa proposição tão radical: ouvem-se vozes. é óbvio que nossa primeira consideração é: de onde elas vêm? quem as enuncia? quem são os donos das vozes? e o mais interessante é saber quem é essa pessoa que ouve, que dá atenção às vozes pronunciadas por não se sabe quem. hoje eu soube, afinal, do que se trata ouvir vozes. pois eu as escuto às vezes. ouvir vozes é pensar palavras, em primeiro lugar. eu particularmente não penso em palavras; na maioria esmagadora das vezes eu penso em imagens. até mesmo para fazer cálculos matemáticos eu uso imagens: para acrescentar três ao nove eu imagino 3 tijolos, três lacunas; para cozinhar a massa, eu imagino 5 espaços do relógio (por exemplo, dos 20 aos 25 minutos de qualquer hora) mais dois espaços pequeninos dos ponteiros. ouvir vozes não é pensar em imagens; é pensar em palavras. começa com palavras soltas, porém densas, como se fossem pedradas na mente: "viado", "incompetente", "burro", "brocha", "pedante". essas palavras podem aparecer a qualquer momento e te fazer estremecer. são pedradas mesmo. anos mais tarde, já acostumado com as palavras soltas como se fossem pedras, aparecem as frases inteiras, as frases de ordem, sempre depreciativas acerca de nós mesmos: "tu é um lixo", "tu é ridículo", "ele te odeia", "ele sente vergonha de ti", "ela te esqueceu". fica mais grave quando o pensamento se complexifica e atribui às frases declinações plurais: "eles te ignoram"; "nós não valemos a pena". hoje eu entendi o que significa ouvir vozes. é deixar de pensar em imagens, é pensar na frase, no tom da voz, no timbre, na entonação. é ler a frase como imagem, no pensamento. é acordar do cochilo pensando em "fracasso" - e a palavra fulgura como um slide show. pois não se trata de "ouvir" vozes, mas de ler vozes no pensamento.